A saúde mental na cena eletrônica brasileira no pós-pandemia: é preciso se lembrar de quem já se foi, mas, mais do que isso, é preciso honrar as lições que eles nos deixaram
Escolhido em 2003 pela Organização Mundial da Saúde, 10 de setembro é o Dia Mundial da Prevenção ao Suicídio, uma data que reforça a importância de estarmos sempre atentos aos sinais dados por nossa saúde mental como medida preventiva. No ano passado, realizamos uma pesquisa para verificar como estava a mente de artistas brasileiros no período da pandemia, e para 2022, convidamos a psicóloga, e também DJ e produtora, Rafaella Bueno, que estuda e trabalha diretamente com o assunto, para nos dar um olhar clínico sobre essa pauta tão necessária.
Para além de trabalhar as questões do setembro amarelo, é preciso lembrar que em saúde, de um modo geral, devemos trabalhar com a PREVENÇÃO. E minha experiência clínica com os artistas vem consolidando cada vez mais os dados encontrados em minha pesquisa de monografia.
É preciso prevenir, é preciso abordar, é preciso quebrar o tabu de falarmos sobre o suicídio. O Setembro Amarelo, ao contrário do que muita gente acredita no senso comum, não é um mês para falar de saúde mental, é uma campanha para falar sobre PREVENÇÃO AO SUICÍDIO.
E em minha caminhada não há como falar desse assunto sem falar da minha supervisora clínica Dra. Ticiana Paiva. Sua longa trajetória na clínica de urgência psicológica é uma luz para nós. Ela vem formando cada vez mais profissionais da psicologia que estejam preparados para essas demandas tão complexas. Seu lema é "QUALQUER AJUDA, NÃO AJUDA!"
A demanda de suicídio e autolesão é de um manejo extremamente difícil e complexo, por isso nós psicólogos precisamos estar muito preparados para fazer intervenções assertivas que possam de alguma forma ajudar essa pessoa a fazer um link com a vida. E isso é muito técnico, de vivência e experiência. Dessa forma, sempre alertamos as pessoas do senso comum para que não abram seus DMs para acolher essas demandas - ouça, só esteja ali e indique um psicólogo. Geralmente as pessoas dizem frases positivas em momentos muito ruins (a famosa positividade tóxica) para a outra pessoa que está em sofrimento, e isso faz com que ela sinta que seus sentimentos não são reais ou válidos. Isso provoca ainda mais sofrimento, podendo diminuir ainda mais o vínculo desta pessoa com a vida e com a realidade, provocando um gatilho para a ação.
Precisamos entender a nossa responsabilidade como comunidade, como sociedade, e não anular nem diminuir o que não podemos sentir ou compreender. Aqui começa o nosso exercício de empatia real!
Ao contrário do que muita gente faz, a empatia não consiste simplesmente em se colocar no lugar do outro. Fazer isso seria julgar a escolha e a posição do outro com a minha visão. Empatia é compreender de verdade o mundo e o sentido que as coisas têm para o outro, do ponto de vista dele, sabendo dos seus valores pessoais e dificuldades, poder compreender e aceitar suas escolhas e sentimentos.
A maioria das pessoas não leva a sério quando alguém expressa seu desejo de acabar com a própria vida. Temos dificuldade de aceitar, ouvir e dar importância àquilo que não faz sentido para nós. Então, a empatia nos coloca de verdade em relação com o outro e não com aquilo que projetamos de dentro de nós no outro. Quando eu quero ajudar alguém com esse nível de sofrimento, preciso apenas estar presente! E o mais importante, indicar a pessoa que busque ajuda! Seja uma rede de apoio!
O que é rede de apoio? Rede de apoio consiste num grupo de pessoas que dá auxílio sempre que necessário, colaborando ativamente com a pessoa em sofrimento, com o que ela precisa, e não com o que achamos que ela precisa.
Então, ofereça ajuda ativa, pergunte se a pessoa precisa de ajuda para marcar uma sessão de terapia, se precisa de ajuda para ir ao médico, se precisa que alguém faça uma comida... muitas vezes as pessoas que pensam em suicídio estão em grande fragilidade e vulnerabilidade. Muitos sentem medo e sentimento de solidão, por isso o nome rede aqui cai tão bem. É um tipo de relação em que o outro possa descansar em segurança de que não será invalidado diante do seu sofrimento e nem será novamente ferido.
É importante dizer que nem toda pessoa que tem ideação, tem depressão. A essa relação que é feita pelo senso comum não cabem generalizações. A ideação é um sintoma que aparece diante de um grande sofrimento emocional, não necessariamente ligada a depressão ou a ansiedade, ou até mesmo outras psicopatologias. São muito mais complexos os caminhos que a mente faz para tentar lidar com as nossas dores.
Trazendo esse contexto para a cena eletrônica, temos visto as festas voltando com tudo, porém muitos artistas estão em sofrimento, passando por situações de comparação, com muita dificuldade para investir e desenvolver a carreira. E por que eu falo novamente que todo artista deveria estar em processo psicoterápico? Lembram-se que comecei este artigo falando sobre prevenção? Justamente! O que minha caminhada clínica tem me mostrado até aqui é que quanto maior me torno como artista, quanto mais visibilidade tenho, mais cobrança recai sobre meus ombros, maior é o peso que carrego pelo que chamamos hoje de influência, a fama.
O que tem acontecido muito hoje é que pessoas cada vez mais jovens, com 16/17 anos já estão fazendo muito sucesso e isso reflete na saúde mental deles com muito mais facilidade. Muitos ainda estão construindo suas personalidades e não tem maturidade suficiente para lidar com o ônus que ser artista também pode carregar. Aqui vale uma informação importante: nossa área de raciocínio lógico do cérebro só fica mesmo madura por volta dos 25 anos. E também relacionamos aqui em alguns contextos o uso de álcool e outras substâncias.
Em minhas sessões com os clientes buscamos entender os contextos e relações que eles vivenciam e como elas podem estar sendo negativas ou positivas para nós como pessoas e também para nossa carreira artística. Ampliamos e aprofundamos o olhar cultural, psicológico e relacional para que o artista possa desenvolver relações muito mais saudáveis e conscientes.
O que posso adiantar é que ficamos muito tempo comparando o que não conseguimos fazer com o que o outro conseguiu realizar. Isso faz com que a gente tenha uma ideia errada de nós mesmos e também do outro. Toda comparação é injusta, pois nunca teremos acesso total à completude do outro. Só temos acesso ao total de nós e teimamos em comparar com o que vemos do outro, que é somente o que está à mostra.
Dessa forma, o mercado vem vivendo um adoecimento massivo pelos artistas menos conhecidos, que estão passando situações de sentimento de menos valia e inadequação, pois neste momento o mercado da produção de eventos busca uma recuperação financeira. Isso acarreta uma série de resultados em cadeia para toda a classe.
Por exemplo: irá acontecer um grande evento na cidade. Geralmente temos ali de 8 a 12 atrações. Quantos artistas têm na sua cidade querendo uma oportunidade? (Pois é!)
Agora pensando como o produtor do evento, que óbvio, visa o lucro do evento, bilheteria, bar etc. Desses 8 ele vai colocar 1 grande artista para garantir a bilheteria (geralmente os mesmos artistas), porque funciona! Afinal, quando tem algo diferente e não muito conhecido o público não valoriza ou não comparece!
Temos ali outras chances para os artistas locais (novamente os mais conhecidos) pois ajuda a compor o line-up com o grande artista que vem de fora, e assim criamos um ciclo fechado (chamado de panela), que diminui drasticamente as chances de inserção daquela outra enorme parcela que está ali também em busca de oportunidade. Sendo assim, muitos artistas estão criando saídas e outros movimentos, como criar suas próprias “panelas”, e investir também em eventos para ter mais chances de tocar.
Compreende o quanto é complexo viver o tempo todo se lapidando e buscando entregar tudo e mais um pouco? O que minha pesquisa mostrou é que a maioria de nós acaba adoecendo mesmo, como uma insalubridade da nossa profissão, pelo excesso de frustrações, dificuldades, invalidações e escassez de oportunidades. Afinal, sempre haverá os que estão fazendo a engrenagem girar, o que não significa que eles também não sofram com outras coisas.
Pânico, depressão, ansiedade, burnout, estresse, insônia, falta de apetite, sentimento de insatisfação com a vida, dificuldade nas relações familiares e amorosas... tudo isso levando, por vezes, à desistência da carreira, e outras vezes ao suicídio, como no caso do Avicii e outros artistas que conhecemos. Quanto maior o artista se torna, maior é o peso psíquico e auto cobrança, então se eu pudesse dar uma orientação hoje, seria: busque ajuda mesmo que você ache que está bem! Tenha um psicólogo ao seu lado, mesmo que você acredite que dá conta sozinho. Tenha um espaço de fala sem julgamento. Tenha um local de segurança para ser vulnerável.
Muitas vezes tornar-se celebridade tira de nós a dimensão humana, nos consideram algo mais perto dos astros e deuses, porém continuamos a sê-lo. Sendo assim, precisamos de cuidados.
E se você quiser saber mais informações de qualidade sobre o tema do setembro amarelo, siga a Dra. Ticiana Paiva nas redes sociais.
Esse ano estamos com a campanha #suicídiozero, num movimento de muito acolhimento e manejo efetivo, afetivo e assertivo. Você pode ler minha pesquisa neste link e me seguir nas redes sociais para mais informações.
Sobre o autor
Rafaella Bueno
Rafaella Cavalcante Bueno 31 anos. A neta da Dona Tereza e filha da Karla. Psicóloga Clínica - ACP (Abordagem Centrada na Pessoa) - Graduada pela PUC Minas. DJ de House Music por amor e vocação. Embaixadora e colunista DJane Mag BR. Aprendiz de Produção de Eventos. Aluna de Produção Musical. Pesquisadora de saúde mental.