"Gosto de quebrar os dogmas e me libertar de um certo conformismo que se encontra dentro das vertentes da música eletrônica": entrevistamos o pai do Ancestral Soul, Boddhi Satva
Boddhi Satva, um dos grandes pioneiros do Afro House e o pai do “Ancestral Soul”, acaba de lançar seu novo álbum Manifestation. O compilado chegou às principais plataformas no dia 17 de junho, sob a gravura da BBE Music. São trinta e uma faixas com um amplo espectro musical que revela diversas camadas étnicas e um blend entre gêneros como Soul, R&B, Trap e Amapiano.
O artista da República Centro-Africana, mudou a maneira como as pessoas percebem a Dance Music, quebrando barreiras estéticas na hora de compor. Em seu novo álbum, são aproximadamente trinta artistas conterrâneos colaborando entre faixas de queima lenta e faixas voltadas à pista de dança, mas sempre com uma atmosfera muito particular, ancestral e profunda. Entre os artistas temos, Ekele, Jorge Bezerra, Mr Luu, Davi Lorenzo, Coréon Dú, Preto Show, Dino d’Santiago, Jackson D’Alva, Kaysha, ÉLLÀH e Melissa Fortes.
Um LP de longa audição, que nos convida a um verdadeiro mergulho dentro de uma cultura riquíssima. Com tantas músicas e tanto a dizer, decidimos convidar esse super-artista para uma entrevista especial aqui no portal. Confira abaixo:
Olá Boddhi Satva, tudo bem? Bom, primeiramente precisamos dizer o quanto nos sentimos honrados em poder entrevistá-lo, muito obrigada por esta oportunidade. Você tem uma carreira respeitadíssima, sendo um dos pioneiros do Afro House, criador do Ancestral Soul, além de ser uma porta para diversos artistas. Grandes feitos. Como você enxerga a sua carreira neste momento em um panorama geral? Era tudo o que você almejava?
Boddhi Satva: Primeiramente gostaria de agradecer pela oportunidade de apresentar meu trabalho através desta plataforma. Esta é uma ótima pergunta e, pra ser honesto, embora tenha alcançado muito até agora, sinto que há muito mais a fazer. Sinto que cheguei a um ponto de expansão artística que é promissor e cheio de grande potencial.
Seu som sempre nos coloca num estado de audição aguçada. Afinal, é sempre um convite a perceber diversos ritmos, cultura, ancestralidade e originalidade. Sempre há uma história sendo contada. Quando vi que Manifestation tem 31 faixas, fiquei impressionada. Como é o processo criativo para você? E o que te motiva a colocar gêneros diversos para interagir?
O processo criativo é sempre muito natural, mas exige muito trabalho — sou um pouco perfeccionista. Quando se trata de gêneros e como fazê-los interagir uns com os outros sob a identidade Ancestral Soul/Afro House, acho que é uma questão de ser criativamente aberto e trabalhar nas suas habilidades e ofício o máximo que puder. Também gosto de quebrar os dogmas e me libertar de um certo conformismo que se encontra dentro das vertentes da Música Eletrônica.
E já emendando nessa última pergunta: você acha que no cenário musical, especialmente na Dance Music há um pouco de “mais do mesmo” em alguns momentos. Você acha que as pessoas acabam podando sua criatividade para seguir tendências? Como você, tão experiente e que quebrou tantos paradigmas estilísticos, enxerga o mercado fonográfico hoje, neste aspecto?
Como comentei antes, sua observação diz muito sobre como várias pessoas preferem estar presos em seus caminhos na música eletrônica. Não me leve a mal, precisamos dos guardiões da “autenticidade” porque, até certo ponto, eu também sou um. Mas ao mesmo tempo, eu não sou ideólogo e aprendi a aceitar que, embora no início você precise ganhar o apoio e a validação dos seus colegas de profissão, logo você percebe que realmente não é disso que se trata. Quando eu comecei realmente a me dedicar aos meus experimentos no som, recebi e ainda recebo retaliação. Até ouvi pessoas dizerem que eu estava perdido e vendido.
No começo dói, mas eu nunca ia mudar e mantive o foco. Agora, 21 anos depois, vemos que eu estava certo em manter o foco na missão que me dei a cumprir.
Ao mesmo tempo, vemos algumas regiões e pessoas vertendo cultura musical, como é o caso do continente africano - como sempre. Inclusive, temos nomes voando alto e levando essa riqueza musical para outros mundos. Você é um destes casos. Estamos falando de mais de 30 nomes em colaborações no seu álbum, onde você oportuniza que artistas tenham seus nomes percorrendo o mundo. Isso é ímpar. Por que você conduz seus projetos assim? Qual a importância dessa abertura?
É algo natural e quase normal para mim, acredito. É claro que executar um projeto desses é muito trabalhoso, mas com certeza é muito, muito gratificante poder contar com o apoio de todos esses grandes cantores e colaboradores para dar dimensão ao meu som. Se você quer crescer rápido, vá sozinho. No entanto, se você quer ir longe, vá acompanhado. Isso se confirma de muitas maneiras e é o que eu tentei demonstrar em “Manifestation”. Sim, vem de mim e sou eu, mas sem os outros e suas magias, seria apenas mais uma música lançada.
Cite alguns nomes de artistas conterrâneos que você acha providencial que a gente passe a conhecer aqui no Brasil.
Bom, são alguns, mas eu diria DJ Satelite, Pierre Kwenders, Freddy Da Stupid, DJ Galiò, Ndinga Gaba, Kaysha, Alton Miller, FKA Mash, Atjazz, Osunlade, Trinidadian Deep, OVEOUS, Raoul K, Manoo etc.
Agora falando sobre a essência do seu álbum. Você diz trazer um pouco de cada canto desse mundo que te marcou de alguma forma nos últimos anos. Conte para gente mais detalhes sobre todo esse processo criativo e o que vamos encontrar em Manifestation.
Acho que você encontrará uma versão mais madura minha neste álbum e isso não quer dizer que minha música nunca foi madura, mas realmente é uma abordagem diferente.
O álbum inteiro foi construído faixa por faixa e eu queria que parecesse uma playlist. Algo que você experimenta como desejar, sem nunca perder a direção. Este álbum também é muito diferente, porque eu o construí até 2021 e dado o quão desafiador aquele ano foi para muitos de nós, eu quis trazer uma energia transformada. Também perdi minha mãe no início de fevereiro de 2022 e ela foi minha maior apoiadora. Portanto, o álbum é uma homenagem a ela e essa energia por si só é muito, muito poderosa e curativa.
Além disso, esse LP fecha o ciclo de uma trilogia que você se dispôs a trazer ao mundo. Tivemos “Invocation” de 2012 e “Transition” de 2016, e todos sempre misturando essa energia espiritual e momentos mais dançantes. Qual a história por trás destes três grandes e importantes capítulos em sua carreira?
Eles estão realmente muito ligados à minha vida pessoal. Invocation foi um álbum que levei cerca de 10 anos para fazer e, como o próprio nome diz, foi mais uma invocação ao meu senso, habilidades e capacidade de colocar em sons as inspirações que eu tinha dentro de mim. Transition, meu segundo álbum, foi uma homenagem ao meu pai, que faleceu em 2014 e marcou uma séria evolução no meu som e composições. Agora o Manifestation que, como eu disse anteriormente, é o encerramento desta grande trilogia que presta homenagem à minha falecida mãe, mas também a muitas dores e diferentes lutas da vida que tenho sofrido ao longo de muitos anos. Chegou o momento para que mais grandeza se manifeste.
Agora indo um pouco para o âmbito pessoal. Você tem uma rotina espiritual/meditativa? Como equilibrar os mundos entre uma vida pessoal equilibrada e uma vida artística que demanda bastante atenção? Quais são seus rituais de autocuidado para se manter saudável?
Quando se trata de minha prática espiritual, minha saúde mental e equilíbrio físico, eu aproveito cerca de 3 horas todos os dias apenas para meditar, ir à academia, ouvir muitos podcasts etc… E claro, comer o mais saudável possível.
Não poderia deixar de perguntar sobre seu conhecimento sobre a cultura musical brasileira. Ouvimos Xangô e por isso gostaria de saber o que da nossa terra que te encanta e te inspira na música? Já pensou em misturar o Ancestral Soul com Bossa Nova?
Eu amo música brasileira, na verdade, e Jorge Bezerra que toca todas aquelas percussões maravilhosas e colocou sua voz em Xangô. Ele é mestre da percussão brasileira. Como você pode ouvir na música, misturei muitas referências que testemunham o quanto estou inspirado.
E agora, após entregar ao mundo um projeto tão robusto, o que acontece para Boddhi Satva? Obrigada por essa conversa!
Muito se espera, desde videoclipes a remixes, até mais músicas originais sendo lançadas. Basta reservar um espaço para muitas coisas boas.
Imagem de capa: Play BPM