“O meu trabalho e tudo o que eu sou está correlacionado com a minha existência e com o meu poder de decisão de ser eu”, afirma Valentina Luz em entrevista no DGTL São Paulo
Muito se fala sobre persistência, mas até onde você é capaz de correr para alcançar os seus sonhos e objetivos? As adversidades e os obstáculos nunca deixarão de existir na vida de um ser humano, mas o segredo está exatamente em nunca desistir.
Valentina Luz merece ser exaltada. DJ, preta e trans, a paranaense percorreu, e continua percorrendo, um desafiador caminho em sua vida pessoal e profissional. Natural de Mandaguaçu, uma cidade de pouco mais de 23 mil habitantes, se descobriu multiartista, iniciando sua carreira na dança, posteriormente na modelagem, onde assinou campanha para a Arezzo e, por fim, na discotecagem.
No último mês, mais precisamente no dia 9 de abril, Valentina deixou a sua Luz no DGTL São Paulo e fez história na música eletrônica brasileira, comandando o palco Frequency ao lado de artistas nacionais e internacionais. Obviamente, não poderíamos deixar de bater um papo cabeça e extremamente importante com a artista durante sua participação no festival. Confira abaixo:
Quem é Valentina Luz aos que ainda não te conhecem? Conte um pouco da sua história.
Bom, Valentina Luz é uma multiartista, na verdade eu me considero uma potência da nova geração, porque eu venho do nada e do nada eu construí o meu processo artístico, pronta para viver tudo isso. Então, Valentina Luz é simplesmente um ser humano buscando respeito e espaço no mundo da arte e na sociedade, sabe, porque existem duas Valentinas: a que toca, que modela, que performa, e tem a Valentina Luz do dia a dia que é um ser humano normal que vai no mercado, que faz várias coisas e que passa por várias barras só por ser Valentina Luz. O meu trabalho e tudo o que eu sou está correlacionado com a minha existência e com o meu poder de decisão de ser eu.
Em uma entrevista à Vogue você afirmou que quando entrou no mercado como modelo, não possuía nenhuma referência de mulher trans negra na moda. E na música eletrônica? Você teve alguma referência ou trilhou o seu caminho por si só?
Não, não, não… tive muitas referências, inclusive, internacionais. Por isso que me deu um gatilho em poder fazer isso no Brasil, já tendo outras fazendo isso aqui, mas não tão frequentes no nicho eletrônico, principalmente aqui em São Paulo. Então, minhas referências foram através da Honey Dijon - icônica mulher preta, trans e DJ do house que traz esse groove -, Octo Octa, Eris Drew e várias outras também do meio LGBTQIAP+ que fizeram me enxergar como potência e ver que esse espaço de destaque é possível sim para pessoas como eu. Foi um processo de curadoria e de referência. E até hoje eu me pego vendo várias meninas pelo globo, tocando e se descobrindo como DJ, como produtora, e isso é muito legal, principalmente aqui no Brasil. Não só por eu ter começado a fazer esse trabalho, mas agora eu sinto e vejo que a partir disso muitas meninas começaram a tocar e a se sentirem a vontade de estar ali, sabe, na pick-up, arrasando e dando o nome.
Você também afirmou que a moda quer vender a diversidade, mas não está disposta a dialogar com ela. Como você enxerga isso no mercado da dance music?
Cara, eu enxergo de uma forma assim: acho que tudo na vida é um processo de desconstrução, não só na minha, mas ao todo, então é um trabalho de formiguinha, entende? Eu não vou conseguir quebrar o mercado e trazer todas as minhas de uma vez, mas eu sinto que desde que eu comecei até hoje, as coisas estão mudando, até o exemplo disso é eu estar aqui hoje, representando uma parcela de pessoas negras e trans que muitas vezes não tem nem acesso a saúde, o mínimo; mas estando aqui, mostrando o meu trabalho e tendo expectativa de vida, expectativa de vida, de estar nesse mercado que é tão machista e que tem tanto racismo institucional, então eu sinto que sim, tem essas dificuldades, é muito difícil dialogar… mas agora tendo uma agência e uma equipe super preparada para me vender e pra desconstruir um pouquinho dessas produções, dessas pessoas, para que esse espaço seja acolhedor não só pra mim, mas pras minhas também, Sinto que as coisas estão mudando e mudando para um caminho melhor, de igualdade, mas ainda assim é um caminho longo.
Você se desenvolveu em festas como a Mamba Negra, onde o público, assim como você, preza pela liberdade e diversidade. Agora, você está cada vez mais conquistando o seu espaço no mercado mainstream, que é predominantemente branco e hétero. Como tem sido essa empreitada?
Essa empreitada tem sido um trabalho de retomada, um trabalho de reparação histórica, porque quando a gente vai falar de história da dance music, pessoas como eu estão presentes na construção disso, então o mínimo que eu espero do mainstream é esse respeito, porque está no meu sangue, está na minha cor, está na minha cara, está nos meus trejeitos, e eu não quero nada do que o mínimo que é respeito. A partir do momento que eu entro para tocar, eu não fico imaginando 'ah eu sou preta, eu sou trans', eu entro para tocar e fazer o meu trabalho, e eu espero que todos ao meu redor façam seus trabalhos, porque a partir do momento que todo mundo está trabalhando com respeito e educação, sem olhar gênero e cor, as coisas fluem, e fluem de uma forma tão natural que quando a gente ver o mainstream, ele está sendo ocupado também por pessoas que vão em festas como a Mamba Negra. É só a gente saber dialogar com toda essa gente.
E o fato da cena da música eletrônica mainstream ser ocupada a maioria das vezes por homens brancos é o que mais me motiva para estar nesses espaços, fazendo esse trabalho de retomada, de mostrar o quanto pessoas como eu tem capacidade de retomar esse lugar que já era delas antes por direito.
Valentina LuzComo você descreve a sua sonoridade? Quais e quem são suas referências?
Cara, eu estou numa vibe bem grooveada, estou ouvindo muito house e vertentes. Eu sou dançarina, desde que eu comecei a pesquisar música, discotecar, eu sempre me imaginei dançando, então eu acho que a minha sonoridade vai muito pra um lugar de me ver ali na pista, sabe, eu me teletransporto tocando para me imaginar ali na pista. Eu gosto de dançar, de fluir também entre os gêneros, as vertentes, então eu vou pirando e pesquisando muito, eu ouço muita música, e ouço muita coisa grooveada, porque gosto groove, de um remelexo, de uma coisinha, sabe, chique, uma batidinha chique, e é isso que eu venho tocando, mas também não fujo das minhas origens, tem lugar que eu chego e eu sinto e eu quero tocar um funk no meio de um set de house, aí eu já ligo num acid, então eu estou bem nessa vibe e apaixonada por acid house. Às vezes eu estou ali, de boinha no groovezinho e vem um 'pa pa pum' de um acid house, eu acho que isso é o que me motiva a tocar também, e descobrindo o meu estilo conforme os anos vão passando...
Quais são seus sonhos e objetivos dentro da música eletrônica? Onde você quer chegar?
Cara, eu quero chegar num lugar que nem eu imagino, porque as coisas foram fluindo tão organicamente... o meu plano de carreira eu fiz ano passado e já superou as expectativas, então eu estou assim, com calma, cada festa é uma festa. Toda festa, seja para 150 ou 3 mil pessoas, 10 mil pessoas, eu vou estar ansiosa. A minha expectativa com a minha carreira é que eu consiga me manter no mercado, que eu consiga ainda mais mostrar o meu trabalho e que eu possa me descobrir em outras áreas também, porque eu acho que a arte é sobre isso também, e que eu possa cada vez mais atingir pessoas como eu, que já foram crianças que sem acesso a várias coisas, e que é possível sim e que muitas vezes isso está na arte.
Para finalizar, queremos que você deixe uma mensagem de esperança para pessoas trangêneros que sonham em alcançar voos como você.
Eu acho que a persistência é a primeira palavra que eu posso falar. Eu sempre ouvi isso de outros artistas e eu pensava "nossa, persistir né, mas a gente gente já persiste tanto", mas é, gata, tem que persistir, tem que lutar, tem que correr atrás dos seus sonhos, porque ninguém vem na nossa mão e pega e leva, principalmente a gente. Então o babado é pesquisar, é estar atenta aos seus direitos, no seu corpo, na sua alma, tudo que está ao seu redor é uma potência e uma fonte de inspiração, botar isso em prática e esperar que as coisas vêm.
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Sobre o autor
Rodolfo Reis
Sou movido por e para a música eletrônica. Há 7 anos, idealizei trabalhar com esta paixão, o que me levou a fundar a Play BPM. 3 anos depois, me tornei sócio da E-Music Relations. Morei na Irlanda por 2 anos, onde aprendi a conviver e respeitar ainda mais outras culturas. Já tiquei 28 países do globo, mas ainda sonho em ser nômade. Apelidado carinhosamente pelos amigos de "Fritolfo": quando o beat começa a tocar, eu não consigo parar de dançar.